A entrevista do mês de outubro é com o cientista social Marcos Freire de Andrade Neves nos foi sugerida pela Elam Lourdes Marques Lewgoy. A sugestão foi prontamente aceita em razão da importância e consistência da pesquisa realizada por ele.
Espero que gostem. Aproveito para indicar a leitura de um artigo do Marcos: living within assisted suicide
Continuem indicando nomes! O objetivo das entrevistas é divulgar o trabalho de pessoas que trabalham com temas ligados ao testamento vital.
Abraço,
Luciana.
Portal Testamento Vital: Conte-nos um pouco de sua formação e do seu interesse acerca da discussões que envolvem a morte digna.
Marcos Neves: Eu sou formado em ciências sociais pela UFRGS, onde também fiz mestrado em antropologia social. Durante o mestrado realizei uma etnografia no que vim a chamar complexo funerário de Porto Alegre, que é formado tanto pelo mercado funerário convencional (funerárias, cemitérios e crematórios) e instituições públicas, como a Central de Atendimento Funerário municipal e cartórios. A ideia era realizar uma etnografia a partir de uma funerária, já que são elas o único ponto de contato em comum entre todas as outras empresas e instituições. Isso me fez adentrar em questões sobre o funcionamento desse mercado e a sua relação com uma gama de legislações e procedimentos burocráticos que tanto buscam regular o funcionamento desse complexo, como também acabam por criar um estatuto jurídico próprio para a “pessoa morta”. Ou seja, a partir do óbito, a pessoa passa por uma transposição de estatuto jurídico, deixando para trás as proteções e obrigações legais referentes a pessoas vivas e passa a ser encapsulada por uma outra série de outras proteções. Dessa forma, a pesquisa pode ser pensada enquanto uma análise da burocracia que lida com a morte e com a pessoa morta. A pesquisa atual, por outro lado, lida com uma burocracia que organiza a mortalidade. Ela não responde a um óbito que ocorreu, mas estabelece um processo para um óbito que pode ocorrer. O meu interesse no tema da morte digna, portanto, se deu a partir dessa continuidade entre trabalhos que, embora lidando com locais e dinâmicas distintas, convergem nesse ponto.
PTV: Nesse momento, qual é a fase da sua pesquisa?
MN: A pesquisa é uma etnografia sobre uma rede transnacional de suicídio assistido, e o trabalho de campo foi realizado entre 2014 e início de 2017. Atualmente eu estou escrevendo a tese, que deve ficar pronta no primeiro semestre de 2018.
PTV: Por que escolheu a Alemanha para seu doutoramento sanduíche?
MN: A ideia original era realizar trabalho de campo em organizações na Suíça, mas com o tempo a pesquisa foi sendo reformulada e o trabalho nas organizações acabou ocupando uma porção restrita da etnografia. Quando comecei minha pesquisa na Suíça, percebi que ali apenas poderia observar a etapa do procedimento, enquanto todos os outros aspectos que compõem o processo de suicídio assistido acontecem antes, em outro lugar, meses, senão anos, antes. Suicídio assistido é um processo que não se restringe ao procedimento em si. Como a pesquisa então envolveria muitas viagens para acompanhar essa rede, a Alemanha pareceu uma excelente escolha logística. Embora tenha envolvido alguns outros lugares, a pesquisa acabou focando na Suíça, Escócia, e na própria Alemanha, então as viagens foram facilitada. Além disso, na Freie Universität Berlin há um excelente departamento de antropologia médica que poderia contribuir com a minha pesquisa e me oferecer uma base acadêmica de onde eu poderia trabalhar.
PTV: Você visitou alguma organização de suicídio assistido? Se sim, quais? Quais as suas impressões?
MN: Visitei duas organizações de suicídio assistido na Suíça, mas mantenho contato com outras organizações de outros países e que oferecem trabalhos diferentes, como aconselhamento e informações sobre o tema. Na Suíça visitei a EXIT, em Zurique, e LifeCircle, em Basel. EXIT é a primeira e maior organização suíça de suicídio assistido, com mais de 100 mil membros (um pouco mais de 1% da população do país). Eles funcionam em um prédio em Zurique e fazem um trabalho intenso que vai além do oferecimento de assistência ao suicídio – oferecem, inclusive, testamento vital aos seus membros. Meu tempo na EXIT foi limitado, mas na LifeCircle foi diferente. Ela foi o ponto central da minha pesquisa em diversos níveis. No nível metodológico, foi a partir dela que eu pude perceber, constituir e seguir essa rede transnacional. No nível de trabalho de campo, foi um dos locais que eu mais visitei e observei, e acabei me aproximando de sua equipe. Em comparação com a EXIT, LifeCircle é uma organização pequena que oferece procedimento apenas dois dias por semana. A sua equipe é bem restrita e é chefiada pela Dra Erika Preisig, médica suíça que fundou a organização alguns anos atrás. Eles oferecem aconselhamento aos seus membros e fazem um trabalho constante de pressão política para aprovação de leis sobre morte digna em diversos países.
PTV: Na sua opinião, porque o tema suicídio assistido é um tabu no Brasil?
MN: Por vezes penso que o tema sequer é um tabu. Tabus são assuntos ou práticas que embora conhecidos, não se fala sobre. Temas sobre o qual há uma grande pressão social. Suicídio assistido, no Brasil, sequer pode ser pensado enquanto tema. É um tópico pouco conhecido e pouco trabalhado, com muitas pessoas sequer pensando nele enquanto uma realidade ou, ainda, possibilidade. É um tema sobre o qual há muito desconhecimento. Conversando com pessoas no Brasil ao longo da minha pesquisa, muitas delas sequer sabiam que isso é uma realidade em outros lugares. Outras confundem com eutanásia ou simplesmente incluem suicídio assistido sob a bandeira da morte digna, sem fazer qualquer distinção sobre os diversos procedimentos que esse termo pode representar. Durante a reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania que questionou o então indicado a Ministro do STF, Luiz Edson Fachin, a Senadora Ana Amélia Lemos fez uma pergunta sobre eutanásia, mas em conjunto com aborto e destruição de embriões. Ela juntou três temas complexos que envolvem um sem número de nuances e aspectos em uma só questão, além de sequer especificar a qual tipo de eutanásia ela se referia. Foi uma pergunta vaga e que demonstra esse desconhecimento. E como resposta a uma pergunta vaga, a resposta também o foi. Atualmente, com novas pesquisas e até mais documentários e séries que abordam suicídio assistido, ele passa a se tornar pouco a pouco um tema.
PTV: Você acha que o suicídio assistido e os cuidados paliativos são excludentes? Ou seja, um paciente devidamente paliado não opta por suicídio assistido?
MN: Não acho que sejam excludentes. Há uma tendência a pensar nas duas áreas enquanto mutuamente excludentes ou em competição uma com a outra, quando elas deveriam estar trabalhando juntas para oferecer opções àqueles que precisam pensar e planejar que tipo de cuidados desejam para o fim da vida. A complexidade que envolve cada situação de fim de vida com a confluência de posicionamentos morais, expectativas de tratamento e qualidade de vida, questões sociais e familiares, entre outras tantas, não pode ser respondida com a prescrição e oferecimento de apenas uma opção de cuidado de fim de vida. Durante minha pesquisa observei casos onde pessoas em cuidados paliativas acabam por optar por assistência ao suicídio em uma etapa subsequente, assim como já vi pessoas que aplicaram ao procedimento desistirem no último momento. O que precisa haver é um fortalecimento dos cuidados paliativos e do suicídio assistido enquanto diferente formas de cuidado que respondem a diferentes situações que não são necessariamente excludentes. Além disso, é necessário um intenso trabalho de informação acerca de cada forma de cuidado, de modo que a pessoa possa conversar sobre isso com suas famílias, amigos e profissionais, tomando uma decisão informada e consciente sobre qual forma de cuidado melhor responde a suas necessidades e expectativas.
PTV: Fique à vontade para tecer outras considerações que julgar pertinentes.
MN: Reforço que é preciso pensar em suicídio assistido para além do procedimento em si. É um processo longo e difícil que envolve interações com familiares, amigos e profissionais de saúde, além de implicar a navegação por uma burocracia complicada e intensa. Não é uma decisão fácil de ser tomada, mas que deve ser respeitada. Mas, antes de tudo, é preciso transformar suicídio assistido em tema e, a partir daí, incentivar uma discussão pública que o desmistifique, possibilitando pensá-lo enquanto uma forma de cuidado que responde a casos e condições de saúde específicas. Condições que não necessariamente podem ser respondidas por outras formas de cuidado.
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